14/09/2021 09h17

Paternidade e Pertencimento

Por: Siuvana de Souza Salomão – Advogada em Dourados

O Direito de Família vem sendo modificado em larga escala, diante da revolução ocorrida no âmbito da família brasileira, que requer mudanças conceituais, sendo uma delas a criação das relações socioafetivas, que envolvem pessoas sem qualquer parentesco sanguíneo, como a relação entre filhos e pais de criação ou, de maneira figurada, de coração. Trata-se da relação baseada no afeto e não apenas na origem biológica, a chamada paternidade socioafetiva. Assim, vem se fortalecendo cada vez mais a expressão "pai é quem cria."

É comum ouvirmos histórias de pais biológicos, embora reconheçam a paternidade num primeiro momento, deixam a criança e/ou adolescente a própria sorte, não lhes conferindo amor, convívio, educação e sustento material, desrespeitando a previsão do artigo 1.634 do nosso Código Civil, que dispõe sobre as obrigações dos pais em relação aos filhos menores de idade. Nestas situações, na maioria das vezes, as mães, sozinhas, responsabilizam-se pela educação e criação dos filhos e muitas dúvidas surgem em relação ao que pode ser feito para retirar o nome do pai biológico da certidão de nascimento do menor.

Sobre o tema, em primeiro lugar, cumpre consignar que este conjunto de direitos e deveres (poder-dever) que os pais exercem sobre a criança é chamado, no Direito, de "poder familiar". Em princípio, os pais biológicos exercem o poder familiar, que somente pode ser destituído via judicial, ou seja, ingressando com ação judicial e desde que presentes as hipóteses previstas na lei.

Com efeito, o artigo 1.630 do nosso Código Civil cuida do tema e diz que perderá o poder familiar ou pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho, ou deixar o filho em abandono, ou praticar atos contrários à moral e aos bons costumes, ou ainda incidir reiteradamente nas faltas previstas no artigo 1.637 do Código Civil.

Da leitura do artigo supracitado, observa-se que o abandono do filho, seja ele afetivo ou material (ausência de pagamento de pensão alimentícia), consta como fundamento legal para pleitear a destituição do poder familiar do pai biológico faltoso.

Contudo, a questão é bem mais complexa do que se imagina e a destituição do poder familiar é medida extrema e que, portanto, só deve ser deferida pelo juiz quando apurado e comprovado que a criança encontra-se em situação de risco. Caso contrário, a destituição – leia-se: perda dos direitos e deveres sobre o menor – não será deferida, em razão do principio do melhor interesse da criança.

No caso de pais biológicos que não pagam pensão alimentícia ou que não tenham convívio/contato com os filhos, tal motivo, por si só, não enseja a destituição do poder familiar e, consequentemente, impede a retirada do nome do genitor da certidão de nascimento da criança.

Isso porque, segundo o princípio do melhor interesse da criança, caso seja retirado o nome do pai biológico, o infante não poderá reclamar do pai faltoso o pagamento de pensão alimentícia via judicial, porquanto não haverá prova da relação de filiação, o que impede a propositura de qualquer pedido judicial. Além disso, o menor que excluir o pai biológico de seu registro de nascimento, será excluído do direito sucessório deste. Em outras palavras: se a retirada do nome do pai biológico fosse permitida, a criança seria sobremaneira prejudicada, pois excluída da sucessão.

Por essas razões, que envolvem direitos de personalidade e direitos sucessórios dos filhos menores, o Poder Judiciário não permite a retificação da certidão de nascimento para excluir o nome do genitor faltoso. Em contrapartida, caso o pai biológico não seja presente e houver pai afetivo – padrasto – a genitora do menor, caso queira, poderá ingressar com ação judicial pleiteando, de forma cumulativa, a destituição do poder familiar no tocante ao pai biológico e a adoção, no tocante ao pai afetivo. Em outras palavras, o pai biológico perde o poder familiar e o pai afetivo passa a constar na certidão de nascimento do menor. Contudo, vale lembrar que o pedido judicial de destituição de poder familiar exige provas robustas acerca do abando afetivo e/ou material, além da necessidade de se comprovar o vínculo/afeto que une a criança e o padrasto, por exemplo.

O Ministério Público, por sua vez, na pessoa do Promotor de Justiça, será intimado para se manifestar nos autos, para resguardar os direitos e interesses do menor. Caso existam provas robustas, o juiz deferirá a destituição do poder familiar e concederá ao pai afetivo a adoção, que passará a ter seu sobrenome, retificando-se a certidão de nascimento. Importante dizer que é permitido, ainda, constar na certidão de nascimento da criança o nome dos pais biológicos e pais afetivos, conjuntamente, de modo a prestigiar a evolução da sociedade, que estendeu o conceito da família. Não sendo necessário excluir o pai biológico para incluir o afetivo, é permitido constar os dois.

Em 2017, foi editado o Provimento nº 63 do Conselho Nacional da Magistratura, que, dentre outras coisas, trata sobre a paternidade afetiva e o novo modelo de certidão de nascimento.

De acordo com o provimento, o reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva poderá ser feito, diretamente, perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, sem que haja necessidade de requerer tal inclusão junto ao Poder Judiciário. Como dito anteriormente, na certidão de nascimento do menor, poderá constar o nome dos paios biológicos, bem como o nome dos pais socioafetivos, sem qualquer objeção.

Acerca do tema é importante lembrar que que cada pessoa que nasce ou é vinculada a um sistema, necessita ser reconhecida como membro integrante e respeitada no seu lugar e papel dentro desse mesmo sistema.

No Sistema Familiar os membros são únicos e todos têm o direito de pertencer. Isso equivale dizer que ninguém pode ser excluído não importando suas características, dificuldades ou virtudes pessoais. Todos são importantes para o Sistema.

Quando ocorre uma exclusão, há um desequilíbrio, que pode gerar emaranhamentos diversos. O pai ou genitor, que por algum motivo não conseguiu ficar ou não consegue ser presente na vida do filho, sempre terá o seu lugar no coração desse filho, por mais que a mãe ou outro familiar tente fazer com que a criança pense diferente, por mais que um outro homem assuma a função de pai.

Tenho atendido muitos clientes com esse questionamento, sobre a possibilidade de excluir o nome do genitor da certidão de nascimento do filho e incluir do atual companheiro.

Todo filho possui uma parte de seu pai e uma de sua mãe, sentindo-se pertencente aos dois, quando lhe é negado o convívio ou mesmo quando lhe impedem de nutrir bons sentimentos, ainda que à distância, do outro genitor, isto é sentido como uma exclusão pessoal, uma negação de uma parte sua. Esse comportamento se reflete em uma busca posterior e inconsciente por esta parte negada, a criança buscará traços ou um modo de vida que o conectem àquele genitor alienado e futuramente sentirá, inevitavelmente, ainda que não perceba raiva do alienador.

A filiação biológica não se exclui, a criança só tem um pai e uma mãe biológicos, por isso deve-se deixar os problemas dos adultos com os adultos e deixar a criança ser criança.

Assim, a possibilidade de incluir o pai afetivo, sem excluir o pai biológico é certamente um avanço no Direito de Família (ou Direitos das Famílias). Afinal, tanto o pai quanto a mãe, estão sempre presentes dentro de nós.

Siuvana de Souza Salomão – Advogada em Dourados

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